Memória Negra

O Conselho Nacional de Mulheres Negras e o pioneirismo no ativismo feminino e negro brasileiro

Por Taina Silva Santos*

Em 9 de maio de 1950, o jornal Quilombo divulgou a notícia que anunciou a fundação do Conselho Nacional de Mulheres Negras:

“Um grande público ocorreu à rua São José, 110 – 1° andar, na noite do dia 18 deste, afim de assistir ao ato de instalação do departamento feminino do Teatro Experimental do Negro, denominado “Conselho Nacional de Mulheres Negras”.
Aberta a solenidade pelo sociólogo prof. Guerreiro Ramos, foi por este eminente cientista patrício exposta em traços rápidos a verdadeira situação da gente de côr na sociedade brasileira, acentuando o ilustre orador que no Brasil não enfrentamos uma linha racial conforme acontece nos Estados Unidos. O problema racial aqui é secundário, sendo urgente uma ação educativa e de preparação profissional da gente de côr afim de que ela esteja em condições de acompanhar os estilos de comportamento social das classes superiores.
Além do professor Guerreiro Ramos, sentaram-se à Mesa as Dra. Guiomar Ferreira de Matos e a bailarina Mercedes Batista, a primeira tendo usado da palavra afim de reafirmar seus propósitos de colaborar eficientemente na grande campanha encetada pelo Teatro Experimental do Negro e em Particular pelo Conselho das Mulheres Negras que óra se instalava. Franqueada a palavra ao público, falaram os snrs. Isnard Tomás de Aquino, Alberto Cordovil da Silva, secretário da escola de Samba Azul e Branco, do Salgueiro, Wilson da Silva Gomes, Joviano Severino de Melo, todos apoiando o novo organismo do T.E.N e apresentando sugestões uteis aos objetivos visado s pelo Conselho.
Finalmente, foi dada a palavra à Sr. Dª Maria Nascimento, idealizadora do Conselho […]”
Instalado o “Conselho Nacional das Mulheres Negras, Jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, ano II, n. 9, mai. 1950. p. 4. Acervo Ipeafro.

No primeiro parágrafo da matéria foi destacado que o departamento feminino do TEN tinha como objetivo criar uma associação profissional das empregadas domésticas, uma academia de artes domésticas, de teatro e de balé infantil por meio do Conselho Nacional das Mulheres Negras. Na coluna que Maria do Nascimento – membro do Teatro Experimental do Negro, esposa de Abdias do Nascimento na época e presidenta do Conselho Nacional – escreveu em Abril de 1950, ela também disse que o Conselho trabalharia pela criação do Abrigo do Negrinho abandonado e um jardim da infância. Por meio dessas ações, as mulheres e homens envolvidos nessa iniciativa tinham como propósito a “integração da mulher negra na vida social pelo levantamento educacional, cultural e econômico”. De modo que, a organização se propôs a começar os trabalhos no Rio de Janeiro e, depois, atuar em âmbito nacional. 

Apesar das mulheres negras e as crianças negras serem o público-alvo do Conselho Nacional de Mulheres Negras, a organização era mista e podia ser composta por qualquer pessoa que se interessasse pelos objetivos pré-estabelecidos no coletivo. Antes do ato de fundação do Conselho, por exemplo, Maria do Nascimento usou a coluna dela para fazer um chamado às mulheres brancas, dizendo que:

“O trabalho do conselho será uma tarefa árdua a necessitar imperiosamente da colaboração de toda mulher preta ou branca. Precisamos ser solidariamente unidas em torno desse objetivo de nos valorisarmos, de impor a nossa capacidade de trabalhar e realizar algo em benefício geral. Somente assim teremos possibilidade de vitória”

Um dos requisitos mais importantes para fazer parte do Conselho Nacional da Condição da Mulher era que as e os componentes fossem “sujeitos do caráter prático” para que o grupo não caísse “no terreno da demagogia”, como salientou Maria Nascimento no discurso proferido durante o ato de fundação do departamento feminino do TEN. 

Para feministas negras da minha idade ou mais jovens que eu pode parecer estranho um coletivo empenhado na ampliação da cidadania das mulheres ser negras ser composto por homens como Guerreiro Ramos que entendiam a questão racial como algo secundário, pelo fato da segregação racial no Brasil não ser igual àquela que acontecia no Estados Unidos com base no Jim Crow. No entanto, é importante observar que, para esse grupo, a situação da mulher negra na sociedade brasileira não era vista como um problema que exigia posicionamento e ações, apenas, de mulheres negras. Sendo assim, podemos interpretar o aceite de homens no Conselho como o reconhecimento da responsabilidade social deles diante dos impactos do racismo, do sexismo e da pobreza na vida das mulheres negras.

Como historiadora, acredito que também devemos ponderar o contexto histórico de fundação do Conselho para entender esse aspecto de forma mais ampla. Pesquisas como as de Karoline Carula, Constância Lima Duarte e Sueann Caulfield mostraram que entre os séculos 19 e 20 as questões relativas às mulheres eram discutidas em um campo majoritariamente masculino, tendo existido casos de médicos que se passavam por mulheres para escrever colunas na imprensa e indicar os modelos de comportamento mais adequadas (de acordo com os anseios das elites) às “mães de família” e às mulheres de uma forma geral. Nos tempos atuais, vivemos um cenário bem diferente, no qual a presença majoritária ou exclusiva de mulheres nas discussões que dizem respeito a elas mesmas é algo inegociável.

O contexto histórico também é importante para entender o debate racial da época e o posicionamento expresso na fala de Guerreiro Ramos que não era muito diferente do pensamento de outras figuras do TEN, como Abdias do Nascimento, por exemplo. Para essa geração de militantes do movimento negro, a democracia racial era uma utopia a ser construída e não necessariamente algo a ser combatido. Não foi à toa que Gilberto Freyre teve uma coluna no Jornal Quilombo sobre a democracia racial. Conforme o tempo foi passando, a maior parte desses militantes, entre eles Abdias do Nascimento, mudou de ideia. A violência crescente dirigida à população negra e a cidadania seletiva que reconhecia a participação do negro na formação social do Brasil, mas não garantia os direitos dessa população fizeram com que a maior parte dos militantes dessa geração se tornassem críticos da ideia de democracia racial. 

O que chama atenção nessa história é que, mesmo entendendo a democracia racial como uma utopia possível de ser realizada naquele momento, as e os componentes do Conselho Nacional de Mulheres Negras reconheciam a existência e os impactos negativos de “várias desvantagens sociais” que acometiam as mulheres negras (antecipando o conceito de interseccionalidade), entre elas, a interdição do acesso à educação, a pobreza e o racismo. Por esse motivo, as principais áreas de incidência do Conselho eram a infância, a educação e a formação das mulheres negras – pautas que também fizeram parte das lutas encampadas pela geração de Sueli Carneiro, por exemplo. 

A diversidade de pessoas presentes no ato de fundação do departamento feminino do TEN mostra a relevância das discussões propostas pelas mulheres do Conselho dentro da comunidade negra. O evento contou com a presenças de um público diverso, composto por intelectuais, artistas e militantes importantes que tinham destaque no movimento negro da época. Além de comparecerem no dia de maio de 1950 na fundação do Conselho, figuras como Guerreiro Ramos, Guiomar Ferreira de Mato, Wilson Silva, Milka Cruz, Nely Goethschel, Virgínia Pahim, Maria Manhães, Ody Fraga, Celso Nascimento, Nina de Barros, Natália Santos Correa, Catty Silva, Caramuru de Amaral e Alberto Clodovil se envolveram pessoalmente com a coordenação de setores do grupo que tinham como objetivo: promover a atividades de alfabetização; ensinar balé para as crianças do morro do Salgueiro e teatro infantil; amparar mães e trabalhadoras domésticas negras; oferecer assistência jurídica; orientação sociológica; dar aulas de corte; costura, bordados e tricô; educação física e datilografia, de acordo com o que foi informado no discurso da presidenta Maria do Nascimento. 

Ato de fundação do Jornal Quilombo: vida,ii iproblemas e aspirações do negro, ano II, n. 9, mai. 1950. p. 4. Acervo Ipeafro.

À primeira vista, os conteúdos das formações parecem ser conservadores, machistas e de fato são. Só que, ainda considerando o contexto histórico e buscando ser justa com as fundadoras do Conselho Nacional de Mulher, destaco que esses temas eram padrão para a educação de alta qualidade voltada para as meninas naquela época, apesar dos debates que o movimento feminista vinha emcampando desde o começo do século 20 e que reivindicaram a participação das mulheres no espaços públicos em contraposição às associação do feminino como ambiente e o trabalho doméstico. Como a população negra tinha acesso restrito àquilo que representava status na sociedade, era muito comum que os movimentos negros  acreditassem que incorporar os comportamentos impostos pelos grupos sociais hegemônicos também era uma forma de combater o racismo.

Além das atividades formativas, o Conselho Nacional de Mulheres negras também tinha como plano instaurar uma área recreativa para mulheres em que elas exercitassem o canto, a música, o teatro infantil, o teatro de bonecos e o balé. Também pretendia-se abrir um clube e uma discoteca. Desde o século 19, os clubes negros são um espaço importante de sociabilidade e articulação política para a população negra e iso não era diferente não foi diferente para as mulheres do departamento feminino do TEN.

Com as suas especificidades históricas, o Conselho Nacional de Mulheres representou um dos marcos mais importantes do movimento de mulheres negras na História recente e foi fruto de um esforço pioneiro de pessoas “ativas, esclarecidas e objetivas” dedicadas à ampliação dos direitos e à melhora das condições de vida das “mulheres pigmentadas”, como afirmou Maria do Nascimento. Visto que muitas dos problemas pautados pelo departamento feminino do TEN ainda são uma realidade para a comunidade negra, nos resta continuar a luta contra o racismo, o sexismo e a pobreza para honrar todo mundo que veio antes nós.


*Coordenadora de educação e pesquisa na Casa Sueli Carneiro

Bacharel e mestra em História Social pela Unicamp

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