Por Taina Silva Santos, Bacharel e mestra em História pela Unicamp
Coordenadora de educação e pesquisa da Casa Sueli Carneiro
Entre 31 de agosto e 8 de setembro de 2001, representantes de 123 países se encontraram na África do Sul para discutir e elaborar estratégias de combate ao racismo em âmbito global, em um contexto geopolítico marcado pelo fim da Guerra Fria e pelo encerramento do regime de Apartheid (sistema de segregação racial instituído na África do Sul em 1948 pelas elites brancas que detinham o poder político no país). Durante 9 dias, ativistas, diplomatas, intelectuais e organizações da sociedade civil que fizeram parte da delegação brasileira participaram da 3° Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas. E, por meio da incidência política nesse espaço, o movimento de mulheres negras do Brasil teve uma atuação decisiva e promissora que resultou na implementação de importantes políticas de combate ao racismo no nosso país.
Sueli Carneiro, Nilza Iraci, ambas de Geledés – Instituto da Mulher Negra, caminhando entre um homem e uma mulher caminhando na cidade de Durban. Foto: Acervo Sueli Carneiro.
Organizações brasileiras de mulheres negras foram agentes chave nos encontros preparatórios para a conferência e na sensibilização da sociedade ao chamar atenção para a importância de discutir o impacto do racismo e do sexismo na vida das mulheres negras, no funcionamento da democracia, da produção do conhecimento, por exemplo. No texto A batalha de Durban, escrito por Sueli Carneiro e publicado no livro Racismo, Sexismo e Desigualdades no Brasil, a militante relata a importância de Fátima Oliveira, médica e também integrante fundadora da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Sexuais Reprodutivos, para a formulação de questões no campo da saúde que destacaram a necessidade da execução de políticas públicas voltadas para a população negra. Essa articulação foi importante para que o debate sobre a questão racial nas Américas chegasse ao encontro de Durban com a força, em um contexto no qual ainda havia gente que via o Brasil como o país da democracia racial.
As principais conquistas do movimento negro em Durban foram a incorporação do termo “afrodescendentes” como a nomenclatura para reconhecer o grupo de pessoas negras que sofrem discriminação em diversas regiões do mundo; o reconhecimento dos problemas específicos que afligem as mulheres negras e a visibilidade que o encontro deu para a necessidade imediata de implementação das políticas de combate ao racismo no campo da educação, saúde, habitação, do acesso à recursos básicos como eletricidade, água potável, oportunidades de emprego e preservação do meio ambiente.
Da esquerda para direita: Solimar Carneiro, Nilza Iraci, Sueli Carneiro, Fátima Oliveira e Lúcia Xavier na Conferência de Durban em 2001. Foto: Acervo Sueli Carneiro.
Os documentos aprovados no encontro e ratificados pelos Estados Nacionais que fizeram parte da conferência representaram o firmamento de um compromisso com uma agenda de combate ao racismo que, no Brasil, se desdobrou em iniciativas, como a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2023, de programas como Brasil Quilombola e a implementação de políticas de ações afirmativas, como as cotas raciais. Fruto da luta do movimento negro e do movimento de mulheres negras, essas ações representaram um marco importante na História política do Brasil e um passo fundamental para ampliação de mecanismos que, de fato, assegurassem a cidadania das pessoas negras. Você pode conhecer essas e outras lutas do movimento de mulheres negras acessando os documentos reunidos no Acervo Sueli Carneiro.
Ainda que essas conquistas tenham tido grande importância para redução das desigualdades de raça e gênero no Brasil, a batalha de Durban ainda “não terminou”. Em 10 anos de existência da lei de cotas, o número percentual de negros no ensino superior público aumentou de 31% para 52%, de acordo com os dados divulgados pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar de Ação Afirmativa. Contudo, homens e mulheres negras ainda encontram muitas dificuldades para ingressar no mercado de trabalho por conta do racismo, mesmo com diploma e formação no ensino superior. Em 2022, o DIEESE publicou números que apontam para o fato das mulheres pretas e pardas serem as que ganham menos no mercado de trabalho quando os salários delas são comparados àqueles recebidos por homens negros, mulheres brancas e homens brancos.
23 anos após esse encontro, a cidadania negra ainda é regulada pelo cerceamento dos direitos, especialmente o direito à vida, e o movimento negro e de mulheres negras continua tendo um papel fundamental para fazer valer os acordos que o Estado Brasileiro se comprometeu a por em prática durante o encontro na África do Sul e radicalizar a noção de democracia.
Artigo “Durban não terminou” escrito por Sueli Carneiro para a revista Fórum: outro mundo em debate. nº2 de 2001. Acervo Sueli Carneiro.