Entre os dias 14 e 17 de abril, Nova York sediou a Quarta Sessão do Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes da ONU promovida pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. O evento reuniu representantes de governos, organizações da sociedade civil, pesquisadores e ativistas do mundo inteiro, para tratar de justiça racial nas agendas multilaterais.
Desde sua primeira edição o Fórum vêm se constituindo como espaço importante para denúncias de violações de Direitos Humanos por organizações da sociedade civil brasileira bem como para apresentação de propostas de alternativas.
Neste ano, a Casa Sueli Carneiro participou do evento paralelo “Políticas de Promoção da Igualdade Étnico-Racial: a construção de uma agenda de justiça étnico-racial na política sobre drogas brasileira”. O encontro reuniu também representantes da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos, do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), do Ministério da Igualdade Racial (MIR) e da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas.
Leia a íntegra da fala de Natália Neris, coordenadora de Incidência da Casa Sueli Carneiro, durante a atividade.
Gostaria de iniciar esta fala saudando o Quarto Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes da ONU, o Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil — em especial a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (SENAD) — e o Ministério da Igualdade Racial. Saúdo também a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e todas as pessoas que nos acompanham neste espaço tão necessário de escuta, compromisso e construção coletiva.
Muito prazer, sou Natália Neris, e falo em nome da Casa Sueli Carneiro, uma organização fundada em 2020 e sediada em São Paulo, Brasil, que atua na promoção da justiça racial por meio do cuidado da memória negra, da formação política e da articulação de redes.
A Casa leva o nome de Sueli Carneiro, uma das mais importantes intelectuais e ativistas negras da história do Brasil. Filósofa, ativista e fundadora do Geledés — Instituto da Mulher Negra —, Sueli é reconhecida por sua contribuição teórica e política no campo dos Direitos Humanos e para a luta antirracista global.
Ela participou de momentos históricos como a III Conferência Mundial contra o Racismo da ONU, em Durban (2001), e foi referência em diversos fóruns das Nações Unidas, como os relacionados à eliminação da discriminação racial e à situação das mulheres afrodescendentes nas Américas. Sua trajetória conecta o pensamento negro brasileiro aos debates globais sobre reparação, equidade e justiça.
Desde os anos 1970, Sueli denuncia o racismo no Brasil e propõe uma radical reinvenção democrática a partir das vozes e experiências das mulheres negras. É, portanto, uma referência para movimentos sociais, universidades e organismos internacionais comprometidos com os direitos humanos e a justiça racial.
Hoje, ao dialogarmos sobre a interseção entre política sobre drogas e justiça étnico-racial, é urgente reafirmar que a chamada “guerra às drogas” no Brasil tem sido, na prática, uma guerra contra corpos negros. Isso, todos nós que estamos aqui, sabemos e repetimos, mas há um aspecto pouco discutido deste problema: esta não é apenas uma guerra armada contra corpos, mas também uma guerra simbólica, contra mentes, contra os sentidos que formam a dignidade, e que produz apagamentos concretos de histórias de vida e legados.
É nesse cenário que a memória se torna um campo de disputa política.
Na Casa Sueli Carneiro, acreditamos que a memória negra é uma estratégia de resistência e reparação. Trabalhamos com acervos, com formação crítica, com escuta e produção de conhecimento, principalmente com mulheres negras que constroem redes de cuidado e enfrentamento às violências do Estado. Neste sentido, entendemos que a política sobre drogas no Brasil precisa ser reconstruída a partir de uma ética da reparação. Isso envolve:
- Valorizar a experiência e o conhecimento das comunidades atingidas, que resistem, cuidam e produzem soluções inovadoras desde suas margens,
- Construir políticas públicas participativas e antirracistas, que tenham as juventudes negras, os coletivos periféricos e as mulheres negras como protagonistas,
- Reparar as perdas — de vidas, de tempo, de direitos — com mecanismos reais de justiça restaurativa, incluindo saúde, educação e memória.
Porque sim, a guerra às drogas também é uma guerra contra o direito à memória e à dignidade das vítimas e de suas famílias.
Em resposta a essa realidade, a Casa Sueli Carneiro, desenvolve programas estruturantes que articulam memória, cuidado e formação política. São exemplos concretos nossa Formação Fazedoras de Memória Negra, nosso curso massivo “Ler o Brasil” que culminou em 51 grupos de leitura ativos em todo o país, ampliando o acesso ao pensamento de autoras e autores negros e estimulando o letramento racial crítico em diversas comunidades. Organizamos ainda o projeto Constelações de Memória Negra, que mapeia organizações que atuam com memória em todo o Brasil, visibilizando suas práticas e ampliando redes de colaboração.
Entre 2021 e 2023, tratamos, catalogamos e digitalizamos mais de 2.500 documentos do acervo pessoal de Sueli Carneiro, que hoje estão acessíveis online. Realizamos ainda rodas de conversa, residências artísticas, cursos, festivais, e ações de incidência política com foco no direito à memória e na reparação racial. Nosso espaço físico, recém-reformado, passou a abrigar com dignidade o legado de Sueli Carneiro, se tornando um centro de encontros, formação e articulação da luta negra no Brasil.
É com base nessa trajetória que nos colocamos à disposição para colaborar com governos, organizações e organismos multilaterais na construção de políticas públicas informadas por uma memória negra viva, ativa e comprometida com o futuro.
Seguiremos produzindo caminhos para que a memória seja parte da política de cuidado, da justiça racial e da reconstrução democrática.
Em nome da Casa Sueli Carneiro agradeço pela oportunidade de compartilhar nossa visão e de seguir construindo alianças globais pela reparação e pela vida, — também no campo da segurança pública e política sobre drogas.
Muito obrigada.