Casa Sueli Carneiro e Instituto Beja promovem conversa sobre reparação e memória

Por Sanara Santos, jornalista e diretora da Énois Laboratório de Jornalismo

Na última terça-feira (26/11), aconteceu o primeiro “Encontros na Casa”, evento realizado de forma híbrida, que se dedicou à difusão da memória negra, tendo como tema “Perspectivas Históricas e Contemporâneas das Comunidades Marginalizadas”.

A atividade contou com Juliana Borges, coordenadora de advocacy da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, escritora e pesquisadora brasileira, e Trevor Smith, cofundador e diretor executivo do Black Liberation-Indigenous Sovereignty (BLIS Collective) de Nova York, Estados Unidos. A mediação ficou a cargo da jornalista Vanessa Cardoso, que conduziu as reflexões conectando temas contemporâneos às experiências vividas e às construções históricas do movimento negro, tecendo um diálogo que entrelaça passado e presente.O evento trouxe diferentes gerações e formas de ativismo para o diálogo.

O movimento pela reparação histórica da escravidão, foi um dos temas centrais, isso porque ele tem ganhado força globalmente. Nos EUA, o tema vem sendo discutido desde antes da abolição, em 1865, mas ganhou nova dimensão com o impacto das manifestações do Black Lives Matter.

Em Genebra, no ano passado, a Coalizão Negra por Direitos apresentou para a presidenta do Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU, June Sommer e para Epsy Campbell, ex-presidenta do Fórum. A  “Carta por uma Agenda de Reparações a partir de uma Perspectiva Brasileira”, destacando seis áreas políticas prioritárias, incluindo a preservação da memória como ferramenta central para a justiça histórica.

Fotografia de João Victor de Oliveira (@erez.in)

Memória: a base da reparação

Logo na abertura, foi reforçada a importância de resgatar e preservar a memória negra como forma de compreender as lutas do passado e construir um futuro mais justo. Para Juliana Borges, sem memória, não há reparação. “Reparação não é apenas um conceito abstrato, mas ações concretas que corrigem injustiças históricas”, afirmou.

Ela abordou os estigmas em torno do tema:

“A primeira coisa que vem à mente das pessoas é: ‘eles querem dinheiro!’. Reparação vai muito além disso. É sobre dimensões materiais, como fundos econômicos, distribuição de terras e regularização fundiária. Por exemplo, os acampamentos do Movimento Sem Terra são zonas abolicionistas e parte da luta de reparação negra.”

Juliana destacou a importância  da Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas. Uma pesquisa sobre o tema realizada por Geledés – Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana revelou que 71% dos municípios brasileiros não aplicam a lei, e apenas 8% possuem orçamento dedicado à educação étnico-racial.

“Nossa geração precisa colocar essa pauta no centro. Transformar o sistema educacional é fundamental para discutir memória, pertencimento e reconhecimento. Isso nos ajuda a contar histórias mais ricas e profundas sobre o Brasil.” argumenta, Juliana Cardoso. 

A preservação de patrimônios históricos também foi destacada. Juliana criticou o uso inadequado desses espaços, compartilhando um episódio emblemático:

“Estava em um evento num hotel-fazenda e o salão de festas ficava no subterrâneo. Descobrimos que era uma antiga senzala. Reflete comigo: seria aceitável tomar champanhe em Auschwitz?”

Reparação global e cultural

Trevor Smith, trouxe uma perspectiva global ao tema da reparação, enfatizando a necessidade de transformação cultural. Ele citou o exemplo da Alemanha e sua abordagem sobre o Holocausto, defendendo narrativas que enfrentem a anti-negritude.

“Reparação deve incluir aspectos políticos, econômicos e culturais. Precisamos usar as mídias de massa e o entretenimento como ferramentas para reformular narrativas.”

Trevor mencionou a cidade de Evanston, em Illinois, que foi pioneira nos Estados Unidos ao implementar reparações financeiras a pessoas negras pela escravidão. Ele também fez uma crítica aos “novos formatos de escravidão”, exemplificando com a realidade trabalhista brasileira, em que negros são maioria em escalas exaustivas (6×1) e recebem os menores salários.

“É necessário uma reparação estrutural, no sistema prisional [americano], os complexos profissionais industriais, faturam as custas do trabalho, esse modelo  tem raízes na escravidão, após a Guerra Civil”, comenta o pesquisador. 

Trevor também destacou a importância de uma identidade coletiva forte e criticou a banalização do termo “representatividade” pelo neoliberalismo:

“Quando falamos de representatividade, não basta ocupar espaços; é preciso representar demandas do movimento negro. Figuras como Barack Obama e Oprah, por exemplo, ajudam a difundir uma ilusão de progresso, mas não necessariamente pautam reivindicações estruturais.”

A luta pela emancipação coletiva

Juliana Borges reforçou a importância da coletividade no movimento negro:

“A pessoa preta precisa entender que, se alcançou ascensão financeira, isso não foi conquistado sozinha. Por trás dela, há uma longa história de lutas e conquistas de movimentos negros.”

Ela diferenciou representação de representatividade, destacando que a primeira é apenas a presença de corpos negros em espaços, enquanto a segunda implica em articulação com as demandas coletivas.

“Precisamos fazer os campos progressistas entenderem que a pauta racial não é identitária; ela atravessa todas as questões sociais.”

No Brasil, a falta de identificação com a negritude agrava questões relacionadas à reparação histórica e à unidade das lutas antirracistas. Uma pesquisa recente do DataFolha, realizada em novembro, revela que 60% das pessoas que se declaram pardas não se reconhecem como negras.

Para Juliana, essa negação da negritude reflete uma negação de si mesmo, intensificada pela ausência de memória coletiva sobre a negritude. “Mas a polícia sabe que você é negro. Como diz Sueli Carneiro, temos mais proximidade nas precarizações das nossas vidas do que distanciamentos”, destacou ela, reforçando a urgência de unificar as lutas em torno dessa identidade comum.

Fotografia de João Victor de Oliveira (@erez.in)

Reflexões finais e união global

O evento gerou reflexões sobre a importância de articulações globais que promovam a libertação e descolonização dos povos negros. Segundo Trevor, encontros como esse ajudam a criar conexões além das fronteiras:

“Precisamos aprender com diferentes contextos e estratégias para hackear o sistema.”

O encontro foi viabilizado pelo Instituto Beja, que trouxe Trevor ao Brasil para fortalecer as conexões entre narrativas negras globais. Para Márcio Black, diretor de advocacy e conhecimento do Instituto, “O instituto Beja é uma  filantropia super recente no Brasil, e a gente vem atuando, com agenda de estimular e proporcionar através da filantropia uma nova cultura, com novos repertórios, novas gramáticas e a Casa Sueli Carneiro já faz esse trabalho de preservar memórias e construir a partir delas. Trevor é um complemento natural a esse contexto dos movimentos negros no debate sobre reparação.”

Ficou com vontade de ouvir mais sobre o debate, a gravação estará disponível em breve no YouTube da Casa Sueli Carneiro.

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