O território quilombola de Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis (RJ), guarda uma das histórias mais emblemáticas da resistência negra no Brasil. Fundado por sobreviventes de um navio negreiro naufragado em 1852, o quilombo carrega uma memória ancestral mantida por gerações. Agora, essa história ganha novos contornos com o documentário Brigue de Bracuí, produzido durante o Programa de Residências da Casa Sueli Carneiro pelo cineasta e diretor da TV Uneafro, Thiago Fernandes.
O desejo de transformar o território em obra audiovisual surgiu em 2022, quando Thiago conheceu Mário Gueto Groove, quilombola do Bracuí, durante um encontro da Coalizão Negra por Direitos. Com a ideia já estruturada, faltava apenas o fôlego necessário para tirá-la do papel — o que se concretizou com o apoio da residência artística da Casa.
Durante três meses, Thiago mergulhou na obra de Sueli Carneiro, especialmente no livro Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser (Zahar, 2023). A partir dessa leitura, passou a elaborar conexões profundas entre a história do quilombo e as marcas deixadas pelo epistemicídio, conceito-chave da autora. Com orientação de Taina Silva Santos, coordenadora de educação e pesquisa da Casa, o cineasta desenvolveu o projeto sob o eixo temático “História Negra e Feminismo Negro”.
“Comecei a ler Sueli Carneiro e entendi todas as camadas do filme. O capítulo sobre epistemicídio foi essencial para compreender como, no território, houve uma tentativa de apagamento das memórias negras”, relata.
Uma das imagens que sintetizam esse apagamento é a demolição da antiga casa de José de Souza Peres, senhor de engenho da região, para a construção de uma capela, gesto simbólico que representa o esforço de colonizar a memória, inclusive pela via religiosa.
Mas Brigue de Bracuí não se limita a denunciar. O filme é também celebração de memória viva. Sua protagonista é Dona Amarilda, liderança do território, que, em uma das cenas, afirma: “Conhecimento histórico para compreender as injustiças e reelaborar a dor.” A frase ressoa como síntese do documentário e da própria missão da obra: oferecer à comunidade e ao público um caminho de reconstrução a partir da verdade histórica.
A produção também dialoga diretamente com a atuação política do movimento negro contemporâneo, estabelecendo pontes entre passado e presente. Em 2022, pesquisadores da Universidade Federal Fluminense encontraram, na costa de Angra, destroços do brigue que naufragou no século XIX. O filme recupera essa descoberta e a conecta à oralidade preservada pelas famílias do Bracuí.
Mais do que um produto artístico, Brigue de Bracuí é visto por Thiago como uma ferramenta de incidência política. “Esse filme não é só para ser assistido; ele é para ser usado na luta por políticas públicas para o território”, defende.
Ao transformar memórias em imagem e palavra, Thiago Fernandes reafirma o que aprendeu com Sueli Carneiro: a resistência negra também se faz pelo gesto de narrar e, com ele, negar o apagamento e afirmar a existência.
