Pesquisadora e artista, Liliane Braga Ndembwemi encontrou no Programa de Residências da Casa Sueli Carneiro não apenas um espaço de produção intelectual, mas um terreno fértil para ressignificar formas de transmitir conhecimento. A partir de sua vivência na Residência, Liliane passou a compreender a arte como uma tecnologia preta, uma linguagem capaz de mobilizar não só a razão, mas também os sentidos, o corpo e a ancestralidade.
“É necessário que o corpo sinta o conhecimento. E, para isso, a gente precisa se envolver para além do que a educação formal do Ocidente privilegia, que é o conhecimento abstrato”, afirma.
O projeto com o qual Liliane iniciou sua trajetória na Residência era a adaptação de um conto de sua autoria, publicado anteriormente na África do Sul. A narrativa partia das memórias familiares e dialogava com sua pesquisa de doutorado, desenvolvida em parceria com a irmã, além de abordar referências como a conferência de Durban, o hip-hop — elemento formativo na trajetória da autora — e a atuação de Sueli Carneiro nos terreiros do candomblé.
A proposta inicial, no entanto, se transformou radicalmente ao longo do processo. Sob mentoria da curadora e diretora de programação Luanda Carneiro Jacoel, Liliane mergulhou no Acervo Sueli Carneiro e redescobriu o potencial sensível das esferas acadêmicas. Com escuta atenta e sensibilidade crítica, Luanda estimulou Liliane a traduzir artisticamente o que o acervo lhe provocava — uma experiência de encontro entre memória e criação.
“Essa residência me deslocou do lugar de quem produz reflexão para o de quem entrega essa reflexão por meio dos sentidos”, conta.
O trabalho com o acervo foi feito em camadas. Primeiro, Liliane pesquisou o conteúdo digital com palavras-chave conectadas ao seu projeto. Depois, passou a ler os textos em voz alta, gravar e escutar, buscando compreender o ritmo, a oralidade e o que cada palavra despertava em seu corpo. Esse gesto de escuta a levou a reconhecer o valor da oralidade como elemento estruturante da memória negra e da criação artística.
A programação da Casa também teve papel importante nesse percurso, oferecendo momentos de imersão que, segundo Liliane, “fizeram dialogar as memórias negras” — tanto aquelas resgatadas nos documentos quanto as que ela própria carrega como legado familiar.
O processo culminou na criação de uma personagem: uma Avatar Negra, apresentada na última partilha pública do Programa de Residências. A personagem leu um texto-performance de Liliane, desenvolvido durante a residência, em que arte e pesquisa se entrelaçam em uma linguagem híbrida. Essa criação é, para a autora, parte de uma prática que nomeia como fabulação crítica — um modo de unir fatos documentados a experiências do corpo, especialmente do corpo negro, criando outros regimes de verdade e sensibilidade.
“Esse processo me deu muita satisfação. Foi uma mudança de chave na minha forma de escrever, por conseguir integrar essa memória negra tão familiar, que a escola muitas vezes empurra para o fundo do baú. Era disso que se tratava: trazer essas memórias para o centro e deixá-las guiar o processo. A arte me permitiu liberdade total.”
Ao final da residência, Liliane sai com novos caminhos abertos: não só para refletir, mas para entregar reflexões que toquem, emocionem e mobilizem. Um projeto que reafirma a potência da arte como instrumento de resistência, criação e continuidade de saberes negros.