A arte de jogar, para Agnis Freitas, é também um ato de lembrar, ensinar e politizar. Educadora e criadora de jogos, ela encontrou no Programa de Residências da Casa Sueli Carneiro um espaço fértil para unir ludicidade, pesquisa histórica e afirmação do legado negro. Foi ali que nasceu o novo desdobramento do projeto Narrativas Lúdicas, um jogo inspirado no Tribunal Winnie Mandela, realizado por mulheres negras em 1988, entre elas, Sueli Carneiro.
Agnis já tinha experiência na criação de jogos educativos. Em 2023, lançou Gira Samba, uma proposta lúdica que valoriza mulheres negras no universo do samba. Mas foi em 2024, com o apoio da Casa, que ela se debruçou sobre uma nova missão: transformar em jogo um capítulo pouco documentado, porém marcante, da história do movimento negro brasileiro.
“Logo no primeiro dia da residência, minha orientadora, Taina Silva Santos, me sugeriu delimitar o tema e me apresentou textos sobre o Tribunal Winnie Mandela. Era exatamente o que eu precisava: um recorte claro de tempo e espaço”, conta Agnis.
O Tribunal, realizado no final dos anos 1980, denunciou a violência racial e de gênero no Brasil, tendo como referência o Tribunal Russell e como inspiração a figura de Winnie Mandela. Embora o evento tenha sido crucial, há poucos registros sobre ele nos acervos da Casa Sueli Carneiro e de Geledés – Instituto da Mulher Casa, o que segundo Agnis foi um achado revelador.
“Me surpreendeu ver que o evento tem pouca documentação. Isso, por si só, é um dado. Mas mesmo assim, o acervo e a biblioteca da Casa me deram pistas: livros da época, documentos escritos por Sueli. Foi suficiente para pensar o jogo, imaginar a estética, o design, o tom da narrativa”, explica.
O processo de pesquisa não foi convencional e nem precisava ser. A liberdade metodológica e o acompanhamento próximo de Taina e Ionara Lourenço, coordenadora de acervos da Casa, ofereceram a Agnis uma experiência que ela descreve como “disruptiva” em comparação ao modelo rígido da academia.
“Eu esperava um cronograma engessado, mas a residência me deu autonomia, escuta e abertura. E mais: me deu vontade de voltar para a pesquisa acadêmica, de fazer esse exercício intelectual com prazer”, diz.
Mais do que um projeto, Narrativas Lúdicas tornou-se também um exercício de memória afetiva. Ao mergulhar na trajetória de Sueli Carneiro — uma mulher viva, com seus documentos organizados e acessíveis —, Agnis passou a refletir sobre as memórias da sua própria família, e sobre o que significa preservar histórias ainda em curso.
“Fiquei pensando na importância de manter vivas as memórias das pessoas que fazem parte da minha história. A memória negra não é só do passado distante — ela também é presente, é urgente”, afirma.
O jogo que será lançado a partir da residência está previsto para junho de 2025, com apoio do Programa Vai, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Mas para Agnis, o jogo já começou a cumprir seu papel: difundir o legado negro, formar novas consciências e mostrar que brincar também é uma forma séria de existir e resistir.