Ao se inscrever no Programa de Residências da Casa Sueli Carneiro, a pesquisadora Maria Júlia (Maju), decidiu mudar de ritmo: trocou, ainda que momentaneamente, o samba carioca, tema central de seu mestrado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, pelo pulsar do samba paulistano. O que motivou a escolha foi tanto a localização da Casa quanto o desejo de explorar, em outro formato, a força das mulheres negras nas escolas de samba de São Paulo. Surgia ali o esboço de um documentário.
“Cheguei com um projeto e ele se transformou de um jeito muito positivo”, conta Maju. “Às vezes a gente escreve uma coisa, entra no programa e tudo muda. A residência me ajudou a ver o que eu ainda não estava vendo.”
Sem experiência anterior em programas de residência artística, Maju descobriu na Casa Sueli Carneiro um ambiente fértil de trocas, escutas e estímulos. Foi selecionada para o eixo temático “História Negra e Feminismo Negro”, sob orientação da coordenadora de educação e pesquisa da Casa, Taina Silva Santos. Ao lado de outros e outras residentes, vivenciou um processo intenso de reelaboração do projeto original, agora atravessado por novas referências, encontros e sensações.
O Acervo Sueli Carneiro foi um dos catalisadores dessa transformação. Embora não encontrasse materiais diretamente ligados ao samba em um primeiro momento, Maju logo percebeu que os escritos e reflexões de Sueli, especialmente sobre conservadorismo e construção social da mulher negra, poderiam sustentar teoricamente sua pesquisa. “Foi a partir daí que comecei a pensar em temas como a figura da mulata, o racismo e o machismo dentro e fora das escolas de samba”, afirma.
A leitura do Dispositivo de Racialidade também foi um marco no processo. Em um momento pessoal de inquietação, enquanto se preparava para um congresso acadêmico em Belo Horizonte, Maju revisitou o texto e teve um insight. “Fiquei com aquela sensação de estar atrasada, de estar uns dez passos atrás. Mas relendo a tese da Sueli, pensei: ‘ela levou tempo para construir isso. A gente tem tempo, vamos cultivar esse tempo’.”
Essa noção de tempo cultivado guiou a etapa que Maju chama de “pesquisa de roteiro”. Durante os meses da residência, ela mapeou conceitos, fontes e personagens que poderão compor o futuro documentário. A expectativa agora é seguir com a gravação da obra de forma independente ou por meio de um edital público.
A experiência foi enriquecida também pelo contato com a equipe da Casa. Maju destaca o apoio de Ionara Lourenço, coordenadora de acervos, e a formação oferecida sobre funcionamento de biblioteca — aprendizado essencial para navegar e coletar dados do acervo. “Foi incrível acessar não só os documentos institucionais e políticos, mas também arquivos pessoais da Sueli. Ver fotos dela com os pais, com a filha Luanda… É um acervo muito diverso, muito vivo”, comenta.
As partilhas públicas promovidas pelo programa, em que residentes apresentam suas pesquisas e experimentações, também foram decisivas. Para Maju, ouvir comentários de artistas como o documentarista Thiago Fernandes, também residente, trouxe uma virada de chave: “Entendi que pesquisa acadêmica não é só dureza, não é só o cru. Tem muitas camadas, muitas nuances.”
Com olhar atento e escuta sensível, Maju segue agora o compasso que ela mesma construiu: um samba onde a história das mulheres negras é protagonista, e onde o conhecimento se transforma em imagem, som e presença. Afinal, como ela mesma afirma, samba é coisa de mulher preta.