Artista do corpo e historiadora social, Jéssica Nascimento Olaegbé chegou ao Programa de Residências da Casa Sueli Carneiro com uma inquietação clara: investigar como a organização de mulheres negras atravessa a cena e a história. Ao longo de três meses, mergulhou no acervo da Casa e encontrou, nos documentos a ata de fundação de Geledés — Instituto da Mulher Negra, matéria viva para dar forma a uma dramaturgia que une política, ancestralidade e imaginação.
O projeto, batizado de Sueli e o teatro negro à flor da pele, nasceu com a proposta de dramatizar o momento de criação de Geledés, organização cofundada por Sueli Carneiro em 1988. Mas foi no contato direto com a ata de fundação da entidade que Jéssica descobriu um novo centro de gravidade para sua escrita: o nome de Aparecida Solimar Carneiro, secretária daquela reunião inaugural, que assinou o documento que oficializou o nascimento da instituição.
“É mais do que acessar um documento. É acessar a história de uma família, de uma Casa”, conta. “Quando apareceu o nome de Solimar, nos últimos dias da residência, entendi: a personagem que eu estava ficcionando era ela. Era um registro sobre o registro.”
Guiada pela mentoria da artista e curadora Luanda Carneiro Jacoel, pelo eixo das Artes do programa, Jéssica encontrou um espaço de criação livre e afetiva. O processo combinou pesquisa documental com fabulação teatral, numa busca sensível por reconstruir não apenas o que aconteceu naquela noite, mas o que poderia ter acontecido um gesto artístico de escuta, reinvenção e homenagem.
“Estar na Casa Sueli Carneiro é entrar em contato com uma ancestralidade viva”, diz. “A partilha com a Luanda, com as informações familiares, me deu outra espessura para lidar com o acervo. É uma orientação que não limita, que expande as linguagens. Ela pensa em mídias de criação, abre possibilidades.”
A frase “Organização já!”, retirada do livro Continuo preta: A vida de Sueli Carneiro, de Bianca Santana, foi um fio condutor para a construção da dramaturgia. Mais do que uma palavra de ordem, tornou-se, para Jéssica, uma provocação estética e política: como representar o gesto coletivo de mulheres negras que decidiram fundar uma instituição, registrar sua existência, ocupar o papel de autoras de sua própria história?
A residência também marcou a forma como a artista compreende hoje os sentidos de memória negra e legado. “O contato com a Casa, com o acervo, com o livro da Sueli, me deu uma materialidade concreta da organização das mulheres negras. Não é só ideia, são documentos, são ações, são manifestações reais”, afirma.
Com o texto dramatúrgico praticamente finalizado, Jéssica já vislumbra os próximos passos: levar o projeto para sala de ensaio, captar recursos públicos e montar o espetáculo. Tudo isso com a convicção de que o teatro pode ser ferramenta de mobilização, reconhecimento e continuidade. E que, ao fabular sobre a fundação de Geledés, também se escreve uma nova cena na história das artes negras no Brasil.