Foto: Patrícia Lino
Incidência Política

Bianca Santana representa a Casa Sueli Carneiro em debate sobre autoria negra na USP

A Casa Sueli Carneiro esteve presente no seminário Reconfigurações Contemporâneas de Autoria, promovido pelo grupo de pesquisa “Da autoria literária: história, atualidade, perspectivas”, do CNPq, realizado na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, na Universidade de São Paulo (USP). A instituição foi representada por sua diretora executiva, jornalista e escritora Bianca Santana, que participou da mesa Autoria Negra ao lado do sociólogo Mário Medeiros, professor da Unicamp.

Em sua intervenção, Bianca abordou a escrita de mulheres negras brasileiras como um gesto de resistência e reinvenção da própria ideia de autoria. Ao destacar nomes como Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis e Conceição Evaristo, ela apontou o apagamento dessas vozes pela história oficial e ressaltou o modo como suas obras, além de testemunhos de existência, inauguram formas singulares de narrar, pensar e habitar o mundo.

Leia a intervenção de Bianca

Quando uma mulher negra escreve: autoria, escrita de si e insurgência epistêmica
Bianca Santana | Casa Sueli Carneiro

Boa tarde a todas as pessoas.
E uma alegria estar aqui com vocês, Professora Ligia Fonseca Ferreira, que honra ser ouvida pela senhora. Patricia Lino, Anna Faedrich, que bom ouvi-las.

Obrigada, professor Helio Guimaraes, Rhuan Batista e todo o grupo de pesquisa”Da autoria literária: história, atualidade, perspectivas”.
Agradeço muito o convite para refletir sobre a autoria negra neste seminário que propõe pensar as reconfigurações contemporâneas da autoria. Especialmente por estar ao lado do Mario Medeiros e do Paulo Dutra.

Minha contribuiçao vem de um lugar específico: a escrita mulheres negras brasileiras, que analiso como escrita de si de mulheres negras. Um lugar que é epistêmico, mas também afetivo, político e situado. Nao vou falar aqui de Luis Gama, Machado de Assis, Lima Barreto, Abdias Nascimento, Oswaldo de Camargo, Cuti e tantos outros autores negros importantes. Vou me concentrar na escrita de mulheres negras.

Parto da hipótese de que a noção de autoria — pensada por homens brancos como Barthes, Foucault, Chartier, Lessig, que muito admiro — pode e deve ser confrontada por questões de raça, de gênero e pela crítica à violência epistêmica produzida e reproduzida pelo racismo e o patriarcado.

Aprendi muito com os autores citados. Barthes com “a morte do autor”, deslocando o sentido do texto para o leitor e a leitora. Foucault, com a “função autor”, que organiza e regula discursos na ordem do saber e do poder. Chartier, com a ampliação do campo da análise ao tratar da materialidade da produção textual e dos regimes de leitura e circulação. Autores caros ao programa informação e cultura, em que me doutorei, na Ciência da Informação.

Mas pensar a autoria negra, e a autoria de mulheres negras em especial, exige deslocamentos. Recorro a Miriam Alves, Conceição Evaristo e Sueli Carneiro para pensar a autoria a partir de sujeitos sistematicamente negados como autores. Cuja inscrição como autoras ainda é vista como insurgência política e epistêmica. Dedico essa contribuição às autoras que não puderam assinar suas obras, às que não foram publicadas, não foram lidas, cuja linguagem e cujas formas de narrar foram – e ainda são – consideradas “não literárias”, “não acadêmicas”, insuficientes.

Minha tese de doutorado, defendida aqui na ECA, em 2020, chama-se “A escrita de si de mulheres negras: memória e resistência ao racismo”. Nela, analiso busco mostrar que autoras como Carolina Maria de Jesus, Esmeralda Ribeiro, Cristiane Sobral produzem uma escrita que não se encerra no testemunho, como tantas vezes são acusadas, mas formulam novas possibilidades estéticas, políticas e epistemológicas para a autoria. Cada uma delas pratica uma escrita em primeira pessoa do singular, que é também primeira pessoa do plural. E para isso, não gostaria de assumir aqui um tom de denúncia, mas de mostrar como mulheres negras têm fundado possibilidades de autoria.

A escrevivência, de Conceição Evaristo, é central nessa conversa. Escrever o que se vive, escrever para se ver. O corpo negro, de mulheres negras, borra imagens do passado, em que fomos objeto da literatura, ao narrar experiências coletivas da diáspora negra. Nosso corpo se faz pena. E com ele damos novas versões e contornos à experiência negra no Brasil.

A escrevivência, essa escrita que nasce do vivido, não se limita a ele, nem pretende universalizar a experiência negra. Ela inspira a universalidade radical de Milton Santos, de considerar com equivalência as diferentes autorias.

Resistindo aos regimes de verdade que nos matam, resistindo à política de morte material, mas também simbólica destinada à população negra brasileira.

E aqui subo nos ombros de Sueli Carneiro, e seu conceito de dispositivo de racialidade, que nos permite compreender como o racismo opera como tecnologia de poder: regula a vida, define quem é sujeito, quem pode falar, quem pode saber, quem pode escrever. A função autor, então, não é neutra. É racializada, tem gênero e está situada em regimes de poder.

Mario coloca 2013 como um marco interessante de mudança na recepçao da autoria negra no Brasil. Eu muitas vezes falei de 2015 como um ano importante, vou rever minha data.
Mas por mais que haja uma mudança significativa no mercado editorial, na atençao das grandes editoras, da imprensa, do publico, a autoria negra no Brasil não é uma novidade.

Há autoria negra no Brasil, em diferentes gêneros textuais desde pelo menos o século XVIII. Esperança Garcia, em 1770 escreveu ao governador do Piauí denunciando maus-tratos a que ela e sua comunidade estavam submetidas. Rosa Egipcíaca, produziu um manuscrito teológico no século XVIII, e por isso foi condenada pela Inquisição. Maria Firmina dos Reis publicou o romance Úrsula em 1859, vinte e nove anos antes da abolição.

Antonieta de Barros, jornalista e parlamentar em Santa Catarina no começo do século XX, autora de textos fundamentais sobre educação e cidadania. Carolina Maria de Jesus, que mesmo após “Quarto de despejo” ter sido publicado em pelo menos 13 idiomas teve sua condição de autora de literatura questionada em determinados círculos literários.

Essas mulheres, ao escreverem, sobrevoaram interditos. Tantas outras publicaram sem nome, nas margens. Outras ainda permaneceram inéditas, com manuscritos esquecidos em arquivos ou apagados.

Mais recentemente, nas décadas 1970 e 1980, são criados os Cadernos Negros pelo coletivo Quilombhoje, que lança Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, e a própria Conceição Evaristo. Mulheres que tẽm reinventado o que entendemos como cena literária — primeiro fora das grandes editoras, dos prêmios, das grandes livrarias. Agora, cada vez mais reconhecidas pelo mercado editorial.

A autoria de mulheres negras tem enfrentado o epistemicídio que, como nos explica Sueli Carneiro, determina quem produz conhecimento e como, e que conhecimentos são válidos. Romper as barreiras impostas, escrever, publicar e se afirmar autora tem sido ação coletiva de mulheres negras no Brasil.

Esse percurso coletivo nos revela a fragilidade da noção liberal de autoria como individualidade genial, isolada, proprietária. Nos mostra que a autoria, como lembrou Lawrence Lessig, outro homem branco, é regulada por leis e práticas culturais, que tem se transformado com a internet e a digitalização do mundo. Autoria está em disputa. E a internet, vista como inimiga dos detentores únicos do título de autores, tem permitido uma maior circulação da escrita de pessoas negras no Brasil e em todo o mundo.

Afirmar a autoria negra é deslocar regimes de verdade.
E quem aqui já leu Lélia Gonzalez, em seu pretuguês, sabe que é também a fundação de mais possibilidades de linguagem.

“Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, publicado pela primeira vez em 2006, é, para mim, exemplo máximo dessa potência. Ao narrar em primeira pessoa a vida de Kehinde, uma mulher negra africana escravizada que escreve sua própria história, Ana Maria Gonçalves aprofunda um paradigma de autoria no Brasil. Paradigma, como eu disse aqui, fundado por Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria Jesus, Conceição Evaristo, nomeado pela propria Conceição como “escrevivência”. Mulheres negras deixamos de ser de objetos da literatura para escrevermos, com nossos corpos-penas, vivências que ainda não foram suficientemente narradas. Primeira pessoa do singular, que é também primeira pessoa do plural.

Pra terminar, a autoria negra tem reinventado a noção de autoria, mas também tem imaginado passados e futuros de vida para a população negra brasileira. Resistimos à morte pela execução – vocês sabem que a cada 12 minutos uma pessoa negra é assassinada nesse país – , e pelo abandono à morte na falta de acesso à saúde, saneamento básico, perspectivas, escrevendo passados e futuros de vida.

Se Barthes matou o autor, nós, autoras negras, queremos mais é viver.

Muito obrigada.

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