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Foto: Jana Sá/ Saiba Mais
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Contribuição da Coalizão Negra por Direitos, ao Seminário: ‘Por uma agenda ampliada de Memória, Verdade, Justiça e Reparação’

10/04/23

Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação

28 de março de 2023, das 15h30 às 18h30, na sede do Congresso Nacional (Auditório Freitas Nobre, anexo IV da Câmara Federal, Brasília).

Bianca Santana – Coalizão Negra por Direitos

Não sei a verdade sobre a morte do meu pai. Em 11 de março de 1996, depois do telefonema do homem que ouviu o disparo, ele foi encontrado por policiais militares com um tiro na cabeça e um revólver na mão direita, que estava machucada havia semanas, no quarto da casa onde vivia, na zona norte de São Paulo. Levado ao Hospital Municipal do Mandaqui com consciência, morreu no dia 25 de março por infecção hospitalar, depois de um traumatismo craniano. Os rumores no bairro eram de que ele poderia ter sido morto pelo jogo do bicho – pela banca em que havia trabalhado por anos, por uma banca rival –, ou pela polícia. Ainda que jogo do bicho seja ilegal no Brasil, nossa legislação não prevê pena de morte, vocês sabem. E a precariedade da vida naquele momento, a tristeza constante, sustentam a versão do suicídio. Mas a verdade, não sabemos. 

Em agosto de 2015, logo depois da chacina de Osasco, escrevi uma carta endereçada às filhas dos 18 homens negros executados por agentes do Estado encapuzados:

“Antes de qualquer coisa: a culpa não é sua! Nem da sua mãe, nem do seu pai, nem de algo que ele possa ter feito de errado. É difícil entender agora, ainda mais com o buraco imenso que se abriu dentro de você. Mas a gente vive uma coisa muito doída no Brasil, que expõe homens da periferia, especialmente os homens negros, à violência mais brutal. Por isso a sua história, tão triste e tão dolorosa, não é só sua. Infelizmente, muitas meninas já passaram por isso. Eu que escrevo essa carta também passei.” 

Sigo a carta apresentando dados do genocídio negro. Genocídio reconhecido pelo Senado Federal em 2016, no relatório final da CPI Assassinato de Jovens, que também elencou uma série de recomendações, a maior párte delas ignorada pelo Estado brasileiro. Já estamos cansadas das recomendações.

O título deste seminário “Por uma agenda ampliada de Memória, Verdade, Justiça e Reparação” convida a enumerar tópicos para uma agenda. Como exercício, fiz isso. São inúmeros, da carta de princípios da Coalizão Negra por Direitos, aqueles princípios e agendas para incidência política que se conectavam direta e nominalmente à memória, verdade, justiça e reparação. Pelo tempo restrito, destaco apenas dois:

– promover o fortalecimento da sistematização e da disseminação de nossas memórias e história, bem como a defesa do direito à imaginação negra, como fundamento para a construção de futuro;

– a criação de uma nova política/lei nacional de drogas que regule e descriminalize o uso e comércio de drogas no Brasil, estabelecendo políticas econômicas de reparação para pessoas, famílias e territórios atingidos pela guerra às drogas e investindo em estratégias de cuidados tal qual as políticas de redução de danos;

Mas como eu disse antes, estamos cansadas de recomendações e também de  enumerar agendas.

Vocês certamente conhecem a Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra. Antes de preparar o que traria aqui hoje, como Coalizão Negra por Direitos, consultei Humberto Adami, do IARA –  Instituto de Advocacia Racial e Ambiental , que presidiu a Comissão por 3 gestões. Ele reafirmou, com toda a razão, que a Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra não contou com o aparato do Estado nem com a visibilidade da Comissão Nacional da Verdade. Ainda assim, foram gerados 14 relatórios das diferentes seccionais da OAB, além das inúmeras subsessões e do próprio  relatório da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra, alguns deles em parcerias com outras instituições, como o parecer de 80 páginas sobre aspectos jurídicos da reparação da escravidão preparado pela comissão da igualdade racial do Instituto dos Advogados Brasileiros. 

Assistimos nas últimas semanas às notícias de trabalho escravo contemporâneo, ou análogo a escravidão, em vinículas do Rio Grande do Sul, no Loolapalooza. Sem enfrentar nossos passados presentes escravocratas e racistas, não será possível sanar e superar traumas e fraturas expostas que afetam o hoje e seguirão gerando prejuízos no futuro. Vocês sabem a cor do trabalho escravo ilegal do Brasil de hoje. Nós bem sabemos que o trabalho escravo legal e ilegal no Brasil sempre teve cor. 

O Ministério Público do Trabalho (MPT) tem cumprido papel fundamental na investigação e combate do trabalho escravo no Brasil e – vejam o tamanho do absurdo – há parlamentares nesta Casa propondo uma Emenda à Constituição (uma PEC), que propõe a extinção do órgão. Esta Casa tem o papel de legislar em benefício de toda a população brasileira, de acordo com a Constituição, não pode, portanto, dificultar as políticas de fiscalização do trabalho escravo. 

Em conversa com o professor Hélio Santos, pela lista de mensagens da Coalizão Negra por Direitos agora há pouco, ele me contou que o esboço constitucional feito pela Comissão Arinos em 1986, da qual ele foi um dos protagonistas, que traçou um um modelo para a atual Constituição, previa a constituição de um Fundo Nacional de Recuperação Social. Os constituintes aproveitaram muitas ideias do esboço, mas esta não passou. Segundo o professor Hélio Santos, na biblioteca do Senado Federal há diversos exemplares da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, onde podemos recuperar essas importantes contribuições para, finalmente implementá-las.

Faço essa sugestão diretamente ao Ministério da Igualdade Racial, para a Ministra Anielle Franco, ao Ministério dos Direitos Humanos e também ao Arquivo Nacional, para a diretora geral Ana Flávia Magalhães Pinto. Este é o momento de implementar as políticas públicas de memória, justiça e reparação propostas pelo movimento negro.

A resistência negra pulsa desde sempre neste país. Ainda que o Dossiê de Mortos e Desaparecidos pela Ditadura tenha, mesmo sem essa intenção, reiterado o apagamento de mortes negras e indígenas, também pelos esquadrões da morte, gostaria de destacar o trabalho coordenado por Mário Medeiros no Memorial da Resistência de São Paulo, na exposição “Memórias do futuro: cidadania negra, antirracismo e resistência”. Além de contar das mortes de pessoas negras pela Ditadura e da resistência negra ao regime militar, a exposição mostra a resistência negra ao longo de nossa história: nos territórios, clubes, entidades, irmandades; na imprensa negra, na literatura negra, nos espaços de sociabilidade que são também resistência, na organização política da Frente Negra Brasileira, do Movimento Negro Unificado, do Movimento de Mulheres Negras, da Coalizão Negra por Direitos.  Memória produzida a partir do nosso testemunho, do que ouvimos de boca em boca, mas também da pesquisa em arquivos. Em especial, dos arquivos do MNU e  de Geledés – Instituto da Mulher Negra. 

Na Coalizão Negra por Direitos eu represento a Casa Sueli Carneiro, organização dedicada à memória negra, à educação popular, ao ativismo negro e à produção de narrativas de enfrentamento ao racismo e ao sexismo. O coração da Casa é o acervo pessoal de Sueli Carneiro, que está digitalizado,  e pode ser consultado pelo endereço https://acervo.casasuelicarneiro.org.br/. No arquivo de 2.575 documentos, é possível encontrar manuscritos da filósofa e ativista, de fotografias, atas de reuniões e registros de processos coletivos de busca por justiça. Temos trabalhado para reunir e apoiar organizações negras de todo o país empenhadas em cuidar da nossa memória, e a produzir memória que nos permita verdade, justiça e reparação.

Temas estes muito caros à Conferência Mundial da ONU contra o racismo, discriminação, xenofobia e intolerâncias correlatas, que aconteceu em Durban, na África do Sul, em 2001. A bem sucedida política de cotas raciais para ingresso na universidade pública e nos concursos públicos é fruto direto do primoroso trabalho do movimento negro brasileiro e afro-latino-americano nesta Conferência. Mas as cotas não foram as únicas políticas públicas recomendadas pela conferência, como tantas vezes a imprensa pareceu reforçar. Nas palavras da professora Zelia Amador de Deus, do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará, em entrevista para o livro “Brasil e Durban: 20 anos depois”, publicado pelo Centro de Documentação e Memória Institucional de Geledés em 2021:

“Não conseguimos naquele processo preparatório, tampouco durante a Conferência, afirmar a questão da reparação como um instrumento, uma estratégia de luta na linha da reposição de direitos humanos. Acho que foi um erro separar a reparação neste binômio (reparação pecuniária e através de políticas públicas). A reparação tem de ser tratada no seu conjunto. A reparação financeira tem que estar posta pelo menos na criação de um fundo de reparação. Este fundo não existe, um fundo que alimente as políticas públicas de promoção e de valorização”, disse a professora Zélia.

Além da importante reflexão apontada pela professora Zélia, de como devemos pensar reparação para os crimes da escravidão negra, aproveito para perguntar, nesta casa legislativa sobre a doação de Dom Pedro II pra um fundo para ex-escravizados, mencionado pela Princesa Isabel em carta de  11 de agosto de 1889 endereçada ao visconde de Santa Victória.

Na carta, encontrada no acervo do Memorial Visconde de Mauá, Isabel menciona o envio de fundos em forma de doação como indenização aos ex-escravos libertos em 13 de Maio. Ela escreve assim: “Com os fundos doados pelo Sr. teremos oportunidade de colocar estes ex-escravos, agora livres, em terras suas próprias, trabalhando na agricultura e na pecuária e delas tirando seus próprios proventos. Fiquei mais sentida ao saber por papai que esta doação significou mais de 2/3 da venda dos seus bens.”

Onde foi parar o dinheiro?

Qual a verdade sobre o fundo mencionado pela princesa Isabel?

Deixo também uma pergunta ao deputado que descende da princesa e é proponente da PEC que propõe a extinção do Ministério Público do Trabalho: o senhor não tem vergonha?

Mas voltemos à resistência negra. No mesmo livro sobre Durban, organização pelo Centro de Documentação e Memória Institucional de Geledés, Lucia Xavier, de Criola, do Rio de Janeiro, nos lembra que essa discussão sobre a reparação ser pecuniária segue em curso no Brasil. Mesmo sem fôlego, ela segue em curso.

Conseguimos aqui, neste seminário, nesta Casa Legislativa, assumir o compromisso de dar fôlego a essa discussão para materializarmos, de fato, justiça e reparação?

Não precisamos de mais abstração, mais discurso, mais boa intenção. A historiadora e ativista Wania Sant’anna, em entrevista para o mesmo livro, ressalta que é a materialidade que faz com que o conhecimento político produza a intervenção. Ela pergunta, de forma ilustrativa: “Mas que raios é isso, que tem luz em Ipanema e não tem em Nova Iguaçu?”

Do relatório geral da Conferência de Durban,  produzido pela brasileira Edna Roland, foi produzida a Declaração e o Plano de Ação de Durban, com diversos parágrafos recomendando aos Estados a adoção de diferentes políticas públicas para a promoção social de afrodescendentes. O marco temporal para que as metas fossem alcançadas era 2015. Além de cansadas, estamos atrasados no Brasil na superação do padrão de desigualdades de analfabetismo, escolarização, mortalidade infantil, saúde reprodutiva, acesso à água potável etc etc etc, entre negros e brancos, mulheres e homens. 

Em entrevista para o mesmo livro já citado, Sueli Carneiro afirma: “O que Durban ressalta e advoga é a necessidade de uma intervenção decisiva nas condições de vida das populações historicamente discriminadas. É o desafio de eliminação do gap histórico que essas populações carregam, problemas para os quais a mera adoção de cotas para o ensino universitário é insuficiente. Precisa-se delas e de muito mais.”

Reparação é cota racial. É celebrar Zumbi dos Palmares como herói nacional e o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra.  É  reconhecer  Luiz Gama como advogado, Esperança Garcia como a primeira advogada do país, Laudelina de Campos Melo como liderança-chave da lutas da classe trabalhadora, creditar a importância de ativistas, pesquisadoras e pesquisadores negros, da Comissão Arinos, do Tribunal Winnie Mandela, das Marchas Zumbi e de Mulheres Negras, da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra como fundamental à difusão dessa memória. É cuidar da memória, das mães – e filhas – dos jovens negros mortos em abordagens policiais e em decorrência de violências diretas e indiretas. É criar – ou recuperar – um fundo pecuniário de reparação para descendentes de pessoas escravizadas, é criar e executar políticas públicas efetivas para a garantia de direitos de toda a população brasileira, investindo nas políticas específicas para população negra, para mulheres, para pessoas trans e LGBTQI, é interromper o feminicídio e o genocídio negro em curso, é inventar um futuro de justiça, equidade e igualdade. Reparação, nessa amplitude, é possível com maior pluralidade de sujeitas políticas, com memória, verdade e justiça.

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